Alice Vieira

 

A ALDEIA QUE EU NÃO TIVE

 

    Era uma vez uma aldeia que eu não tive.

    Havia casas que voavam e andavam sobre rodas e tinham escadas que ninguém sabia onde iam dar, que é sempre o destino com que sonha qualquer escada que se preze.

    Os relógios tinham todos parado às dez e dez - não por nenhuma razão especial (um dia hei-de ler uma justificação teórica para o facto, mas por agora não sei nada disso) mas apenas porque toda a gente achava que ficava mais bonito, e mostrava que toda a gente acordava e adormecia, entrava e saía, encontrava-se e desencontrava-se exactamente à mesma hora. Havia estranhos gramofones que, juntamente com aquelas canções roufenhas do tempo da Segunda Guerra Mundial, abrigavam cães e homens com medo – que depois corriam em todas as direcções, com árvores e flores e pássaros a saírem-lhes da cabeça. Às vezes os homens cansavam-se e sentavam-se nos telhados das casas, nas capotas dos automóveis, e deitavam a língua de fora a quem passava, ou ficavam simplesmente de barriga para o ar, a agitar bandeirinhas, ou a deitar ao vento um cão preso por um cordel, como se fosse uma estrela de papel, e se calhar era.

    Nunca se sabia para onde corriam os homens da aldeia que eu não tive. Mas isso não era importante. O importante era saber que, para onde quer que fossem, havia sempre um portão que se abria só para eles, e lobos cheios de saudades do Capuchinho Vermelho que um dias caíu no poço que havia no largo da igreja e nunca mais voltou. Desde esse dia os sinos da igreja têm um som ensurdecedor, e todos os objectos se desfazem em sinais de fumo para ver se ela entende a mensagem e regressa. Enquanto isso não acontece, na aldeia que eu não tive bebe-se muito chá em chávenas e bules e cafeteiras e sonha-se com a palavra paraíso.

    E foi numa tarde de chá e fumo a saír dos bules e das torradas que eu também sonhei com a palavra paraíso, viajando pela aldeia que eu não tive. Pela aldeia que eu passei a ter graças ao João Vaz de  Carvalho. E quem nos dá uma aldeia, tem a eternidade assegurada.

 

Alice Vieira